Por Raíssa Zogbi
“O futuro não é mais como era antigamente”. É com essa reflexão paradoxal presente em uma das canções de Renato Russo, que o filósofo e professor Mário Sérgio Cortella e o apresentador e jornalista Pedro Bial começam um diálogo complexo sobre a juventude, que deu vida ao livro “Gerações em Ebulição”. Com leitura dinâmica, as 123 páginas do livro soam como um bate-papo, que inclusive inspirou o diálogo no Teatro Iguatemi Campinas, no dia 25 de outubro, e a entrevista a seguir.
Fio condutor
Na contra mão de dias velozes em que dificilmente há espaço para se pensar no passado, os autores procuram compreender a necessidade dos jovens em revisitar e se apropriar de referências de gerações anteriores, além de analisarem temas como ansiedade, ócio, rebeldia, militância política e empreendedorismo presentes atualmente.
“Parece que nós perdemos alguma coisa em algum lugar ao dizer que ‘o futuro não é mais como era antigamente’”, reflete Cortella. “Vejo isso talvez como uma certa melancolia que é própria do caráter brasileiro”, complementa Bial.
Cortella explica que esse comportamento contraditório, de sentir saudades de um tempo que o jovem não viveu, pode ser resultado de uma desilusão com o futuro e até de uma ausência de causa. “O objeto de desejo de quem tem 20 anos é retomar um tempo que nós, que estávamos com 20 anos naquele presente que ele deseja, não queríamos”, conta. “É uma juventude pós-fé, pós-ideia de vida eterna”, completa Bial.
Os autores explicam esse comportamento com exemplos corriqueiros. “Depois de tanto batalhar por uma cerveja pronta e gelada para ser consumida, o jovem de hoje quer produzir a própria bebida de forma artesanal. Isso é quase um insulto para a nossa geração”, brinca Cortella. “Há uma nostalgia de algo que não foi vivido”, finaliza Bial.
Bate-papo
Imaginamos um futuro cada vez mais tecnológico e digital, com um turbilhão de informações. Na contra mão, estudos comprovam que as próximas décadas apontam por um comportamento humanizado, que valoriza o contato físico, presencial. O que isso reflete no comportamento desses jovens que buscam referências do passado e até na ausência e uma causa?
Bial: Paradoxal essa pergunta. Hoje predominam duas visões para quem busca entender o cenário. A primeira é de um povo autoritário, que acredita que estamos indo ladeira abaixo. A outra é de um grupo que simplesmente não entende e está perplexo. Por isso, muita gente chama esse momento de novo iluminismo. O iluminismo se fundou justamente no reconhecimento de que não sabíamos das coisas, mas com a noção de que poderíamos vir a saber. Quanto à inteligência artificial, eu acho que ela existe sim. Mas, ela pode servir tanto no sentido adjetivo da palavra (inteligente), quanto na estupidez. Afinal, ela vai ser usada por quem a manipula. A inteligência humana vai ser difícil de se substituir, porque ela tem algo que nada mais tem: consciência.
Cortella: Quando se fala em um mundo mais humano, a referência é a exclusão de uma parte da tecnologia. Mas, a tecnologia é resultante da nossa forma de criação. Por isso, esse mundo pleno de tecnologia não é um mundo pleno de humano. Ele é mais virtual do que presencial, mas não deixa de ser uma relação humana. Acho que isso vai se esgotar por conta do alto nível de superficialidade. Não que não haja pontos de conexão, mas acho que vai deixar as pessoas insaciadas. Não tenho uma visão catastrófica sobre o mundo da tecnologia, mas também não sou triunfalista.
Ao mesmo tempo que vocês criticam a falta de memória ou de conhecimento histórico das gerações atuais, vocês pontuam um sentimento de nostalgia dos jovens de um tempo que não foi vivido por eles. Isso não seria contraditório?
Cortella: Seria se tivéssemos o tempo todo uma perspectiva saudosista, indicando um passado paradisíaco. E não estamos também indicando que o futuro poderá sê-lo. A nossa reflexão é que há gerações que convivem entre elas e, também, com outras gerações, e que uma parcela desses jovens vive com uma intensidade exagerada. Por isso eu não digo: “ah, no meu tempo”. Meu tempo é agora!
Bial: Sim, nosso tempo é agora! Não só não é contraditório, como complementar. Se você mantém viva a ponte com o passado, de investigar a história, você não cai na armadilha da nostalgia. Porque a nostalgia é a saudade daquilo que nunca existiu. É mais fácil você investigar a versão mais próxima do que teria existido.
Como vocês analisam a participação política dos jovens hoje?
Bial: Quando o eleitor se confunde com torcedor de futebol e enxerga a política como um jogo, ele corre o risco de esquecer que você é a bola. Esse é o perigo.
Cortella: Tem um ditado antigo que diz: “Na briga entre o rochedo e o mar, é o marisco que apanha”. E hoje tem muita gente que não imagina o quanto que há uma multiplicidade de posições dos jovens hoje. Se olhar o perfil dos votos, há uma oscilação. O que eu sei é que uma parcela grande volta a se interessar por política, embora de forma pouco profunda. Mas, isso não é só com os jovens. Nós adultos também estamos marcados por essa condição.
E a convivência entre diversas gerações?
Cortella: É louco imaginar que os alunos da universidade de hoje nasceram nos anos 2000. Eu me lembro que tínhamos os anos 2000 como algo meio impossível e agora já estamos em 18. Quando eu estava na escola, nós líamos Machado de Assis e eu ficava espantado porque ele havia nascido em meados do século passado. Agora eu penso: eu também nasci no século passado. Ou seja, estou aqui sentado ao lado de Pedro Bial, nascido em meados do século passado. As gerações estão em um mesmo ambiente. Dizer: ‘Meu mundo era bom’, ou, com a ideia de que o mundo que vale é este que está sendo feito agora: ‘Esse passado, seu tempo, não presta’, isso é esquecer a história. E esse esquecimento da história faz mal para todos, sem exceção. Para mim, um mundo aprazível é aquele em que uma geração não ofende a outra.
Bial: Se há hoje conflito de gerações, é algo muito mais presente no mercado de trabalho, por emprego, por expressão, por representação. Aponta-se que esse mundo multigeracional veio para ficar. Parafraseando o título do livro “O Futuro dura muito tempo”, de Louis Althusser, a velhice dura muito tempo. Hoje temos octogenários totalmente ativos.
Cortella: Até algum tempo, o idoso era aquele acima de 60 anos. Hoje, as companhias aéreas já tem lei para prioridade às pessoas acima de 80 anos. É preciso entender que eu não quero ser jovem para sempre. Mas, não quero perder da minha juventude, coisas que me impulsionaram: a energia, os sonhos, o desejo, a inventividade.
Bial: Talvez a gente precise envelhecer para realizar nossos maiores valores da juventude, que são os nossos sonhos.