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Imensidão do mar: Família Schurmann

Redação Graciolioutubro 3, 2018

Família Schurmann

Por Karina Fusco e Raíssa Zogbi

Foi em uma viagem ao Caribe que o economista Vilfredo Schurmann e a professora de inglês Heloisa Schurmann conceberam a ideia de dar a volta ao mundo em um veleiro com a Família Schurmann. Foram necessários dez anos para planejar os detalhes da aventura que também incluiria os filhos.

Desde então, eles já deram três voltas ao mundo, sendo a primeira, que teve início em 14 de abril de 1984 e terminou dez anos depois, a mais longa. Vivendo no mar, o ativismo ambiental é um dos motivos que os fazem voltar para a terra firme.

Família Schurmann

Ao longo desses 34 anos, a conhecida Família Schurmann aumentou e vivenciou inúmeros desafios que renderam oito livros, dois documentários, uma série de 10 episódios e um filme (“Pequeno Segredo”, que foi o representante brasileiro no Oscar 2017). E não para por aí. Entre as novidades estão o lançamento do especial “Conexão Schurmann – Patagônia” pelo canal National Geographic e a participação na 30ª edição da Regata Internacional Recife – Fernando de Noronha (Refeno). Um dos propósitos desse evento é repercutir a campanha Mares Limpos da ONU Meio Ambiente, da qual são embaixadores.

Família Schurmann

Em entrevista especial para a Campinas Cafe, Vilfredo e Heloisa revelam detalhes da rotina, falam do estilo de vida que prioriza o consumo consciente e dos ensinamentos trazidos pelo mar.

Como tudo começou? Por que tomaram a decisão de deixar a terra firme para viver a bordo?
Começou de forma tão natural e bonita. Foi durante uma viagem pelo Caribe que nós dois (Vilfredo e Heloisa) começamos a sonhar e, assim que retornamos ao Brasil, o sonho também foi compartilhado com nossos filhos. No princípio, éramos apenas quatro: Vilfredo, Heloisa, Pierre e David, que era bebezinho.

O que aconteceu nessa viagem ao Caribe que despertou a vontade de viver no mar?
Fizemos um passeio de veleiro. Nossa! Que sensação maravilhosa! Ali mesmo, naquele mar lindíssimo do Caribe, prometemos a nós mesmos que voltaríamos um dia com nossos filhos e a bordo do nosso próprio veleiro. Mas para esse “um dia” se tornar realidade, definimos uma data: no aniversário de 10 anos de David. Seguindo essa ideia, tivemos uma década para planejar todos os detalhes e ainda providenciar um quinto tripulante. Isso porque, três anos depois do nosso pacto em alto mar, veio a terceira gravidez, a do Wilhelm. Sabe o que era mais incrível e positivo nesse processo preparatório? Todos nós participamos dos preparativos, inclusive os meninos.

Como foi o envolvimento das crianças?
Vendo as crianças a bordo se transformando em mini-marinheiros (mini por causa da estatura), aumentava a nossa certeza que proporcionaríamos algo maior para eles. Se em casa o quintal era um espaço limitado, no veleiro, o playground passaria a ser a imensidão do mar. Se na escola eles conviviam com algumas dezenas de crianças semelhantes, a partir daquela viagem, eles passariam a conviver com centenas, milhares de crianças de culturas e hábitos diferentes. Então, foram aspectos como esses que solidificaram aquela decisão, que guiou nosso sonho e planejamento até a sua realização.

Como foi a fase de planejamento?
Em uma década, nos dedicamos aos preparativos que envolviam tudo: aprender a velejar; adquirir nossa própria embarcação; encontrar um método de ensino para educar os meninos a bordo; conhecimentos de primeiros socorros; economizar o máximo possível e desapegar de bens materiais.

Como seus filhos estudaram ao longo das viagens?
Quando decidimos realizar nosso sonho, também assumimos o desafio de encontrar soluções para a educação dos meninos. Há mais de 30 anos, qualquer coisa semelhante à internet de hoje era cena de um filme de ficção científica retratando um futuro imaginário. Mesmo assim, a realidade daquela época apresentava algumas possibilidades, entre elas, encontramos o método de educação por correspondência de uma escola americana com mais de 100 anos de experiência. E essa foi a base formal de uma metodologia que ganhou nosso toque pessoal. Eu, professora, associei a didática do método à disciplina inserida a bordo. Quando partimos do Brasil, Pierre tinha 15 anos, David, 10, e Wilhelm, 7. Durante a expedição, os meninos tinham uma rotina de estudos e aulas no veleiro. Cada um tinha um determinado número de redações mensais e muitos trabalhos e pesquisas que complementavam as matérias abordadas pelo método de ensino à distância. A gente recebia todo o material didático, inclusive, as provas que deveriam ser aplicadas.

Como eram feitas as avaliações?
Essas provas vinham lacradas e assim permaneciam até o momento, local e condição corretos para serem aplicadas. Quando a gente atracava em algum lugar, procurava identificar quem era a maior autoridade local. Se não era uma cidade com prefeito, por exemplo, podia ser o delegado da região. Em alguns casos, a maior autoridade era o padre da paróquia. A gente entregava o envelope lacrado para essa autoridade. Ela abria, retirava a prova e as regras que determinavam, por exemplo, o tempo de duração. Então, aplicava a prova, permanecendo presente no ambiente até os meninos concluírem. Quando terminavam, eles devolviam a prova para a autoridade, que colocava o material em outro envelope e o lacrava para ser devidamente despachado via correios.

Todos estudaram nesse mesmo sistema?
Na expedição seguinte, tinha apenas uma aluna: nossa caçulinha adorável Kat (ela foi adotada aos três anos pela família e faleceu 10 anos depois por complicações causadas pelo vírus HIV, da qual era portadora desde o nascimento). Assim como os meninos, ela tinha uma curiosidade em descobrir o mundo. Mas, na fase dela, a internet já não era uma ficção. Era uma realidade, ainda limitada, mas uma ferramenta capaz de auxiliar positivamente o aprendizado. Em ambas as experiências, o aproveitamento e o aprendizado se tornaram personalizados e os resultados foram ótimos. Quando David decidiu desembarcar e viver na Nova Zelândia, por exemplo, ele ingressou tranquilamente na universidade. De volta ao Brasil, Kat também não teve qualquer dificuldade em se adaptar ao ensino tradicional na escola.

E o convívio dos seus filhos com outras crianças?
Muitas pessoas questionavam se essa decisão não isolaria nossos filhos. Ao contrário! Ampliou o convívio deles com crianças de culturas e hábitos tão distintos. O veleiro era e ainda é nossa casa. Isso não significa que vivíamos presos na embarcação. Durante uma volta ao mundo, atracamos em diversos lugares, onde permanecemos por períodos variados convivendo com as comunidades locais. Até hoje, mantemos contato com esses amigos e, sempre que viável, os reencontramos.

Vocês se sentiram sozinhos em algum momento?
De modo algum. Nos momentos mais isolados, ali, no meio daquele mar imenso e sem fim, tínhamos uns aos outros e ainda a companhia de golfinhos, pássaros, baleias e peixes. Em terra, sempre foi e ainda é uma festa, uma comunhão de raças e culturas!

Como é a rotina familiar dentro de um barco?
A vida a bordo só dá certo com uma equipe unida e comprometida. Somos uma família, sim, mas a bordo somos um time. Cada um com suas funções e responsabilidades. E tudo é muito organizado, inclusive o roteiro. Não saímos sem destino definido. Podemos até alterar o roteiro, ampliando a permanência em determinado local, atrancando em uma ilha que sabemos que está na nossa rota. Mas isso acontece de forma organizada, dentro de um roteiro predefinido.

Como funciona as compras de itens básicos (alimentação, higiene, beleza)?
Esse é um dos motivos de ter um roteiro predefinido e todos os detalhes devidamente planejados. Se vamos navegar por um mês, planejamos a quantidade de itens para comprar, considerando até a qualidade daquele alimento durante o tempo necessário no estoque. O veleiro tem um espaço limitado, mas super aproveitado. Por exemplo: o banco da nossa mesa também é nosso depósito. Basta levantar o assento e guardar os produtos, como se fosse um baú. Mesmo assim, não há espaço para exageros. Quando adotamos este estilo de vida, reforçamos um comportamento que já era nosso em terra: consumo consciente.

E o cardápio da semana? O que preferem cozinhar e o que é bom evitar?
Sempre tivemos uma alimentação mais saudável. Frituras a bordo era um risco e ainda é. Da primeira viagem até a Expedição Oriente, peixes e frutas são muito presentes em nosso cardápio. E que variedade de frutas e sabores! O mais legal é que sempre incluímos novos destinos e, com isso, a cada expedição, adotamos uma novidade no cardápio pela influência de um hábito até então desconhecido. A partir da Expedição Oriente, por exemplo, incluímos em nossa alimentação a raiz de Lótus, que cresce embaixo d’água e parece uma grande batata. Isso porque chegamos pela primeira vez na China e lá descobrimos que tanto a flor quanto a raiz de Lótus são comestíveis. O alimento é muito saudável, rico em vitaminas e minerais e um dos ingredientes da nossa salada de Lótus, que também leva atum, cenoura e alface.

Como vocês organizam roupas e itens pessoais em um espaço reduzido?
A verdade é que não precisamos de tanto espaço assim. Não há necessidade de um closet lotado de calças, camisas, ternos, vestidos, tênis, sapatos e sandálias. Para que tanta variedade? Quantas calças a gente veste ao mesmo tempo para ter dezenas no armário? O espaço reduzido é o suficiente para uma relação de consumo consciente.

Qual foi o maior medo que já enfrentaram em alto mar?
O medo pode ser desafiador, um estímulo. A situação mais tensa foi diante de uma tempestade na costa da Nova Zelândia, durante a primeira volta ao mundo. Naquela ocasião, enfrentamos uma baixa pressão, com ventos ciclônicos de 135Km/h e ondas de 10 metros de altura. O resultado foi que perdemos os dois mastros e ficamos no mar por 11 dias até voltar ao porto de Auckland. Enfrentar tempestades, furacão ou ciclone é sempre um momento extremamente delicado que requer serenidade. É preciso ter calma para calcular os riscos, tentar prever o imprevisto, organizar a tripulação, preparar a embarcação e enfrentar a situação com a certeza de que vai dar certo. O respeito pela natureza e suas manifestações mais intensas é de extrema importância. Ser arrogante, achando que nós, seres humanos, e nossas invenções são superiores a tudo pode se revelar um erro fatal.

Do que vocês mais sentem falta em terra firme?
Sem dúvida, das pessoas. Então, viva toda a tecnologia que nos mantém conectados com nosso bem mais precioso: parentes e amigos que permanecem no continente.

Qual foi a expedição mais gratificante?
Impossível eleger uma. Cada uma tem sua história e importância. A primeira foi algo totalmente novo, os meninos cresceram a bordo e, ao ser concluída, nos tornou conhecidos como a primeira família brasileira a dar a volta ao mundo a bordo de um veleiro. Um título que nos orgulha, não por vaidade, mas por saber que conseguimos realizar algo até então inédito. A segunda, a Magalhães Global Adventure, trouxe uma nova tripulante: nossa doce e amada filha Kat. Foi acompanhada por milhões de pessoas no Brasil e em mais 43 países, via internet e TV, e terminou com nossa chegada em Porto Seguro, na Bahia, no dia 22 de abril de 2000, dento das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, com os presidentes do Brasil e de Portugal, imprensa internacional e cerca de três mil pessoas na recepção. A mais recente, a Expedição Oriente, marcou a estreia da terceira geração Schurmann a bordo com a entrada do nosso neto Emmanuel para a tripulação. Foi a primeira aventura do veleiro Kat e nos levou para lugares fascinantes e, até então, inéditos para a gente, como Antártica e China.

E o lugar que mais gostaram de conhecer?
Que difícil! São tantos lugares incríveis! Mas vamos tentar destacar alguns, como velejar nos fiordes da Patagônia e navegar nas ilhas da Polinésia Francesa, caminhar na brancura gelada e isolada da Antártica e conhecer a China com suas tradições e modernidade. Xangai, por exemplo, é tão cosmopolita e colorida e, ao mesmo tempo, reserva cantinhos que parecem estar intactos há séculos.

A família Schurmann é exemplo de união. Como a vida de vocês se assemelha ao funcionamento do oceano?
O oceano faz longas viagens, não teme a distância, não tem preguiça. Ele vai longe, às vezes, muito longe, chegando a lugares tão diversos com povos tão distintos. Não tem preconceito. Recebe e refresca diferentes raças, religiões e classes sociais. Nós seguimos assim. Navegando, navegando, percorrendo do nosso litoral até as águas do outro lado do planeta. Parando em praias e lugares tão diferentes, conhecendo tantas pessoas incríveis. Conhecendo seus hábitos e costumes e apresentando nosso jeito de ser, em uma troca baseada no respeito mútuo.

Qual a maior lição que o mar traz para vocês?
O mar é nosso quintal, nosso lar. Com ele aprendemos a viver uma liberdade plena, a contemplar a beleza do nascer do sol, a se encantar pela companhia dos golfinhos, a escutar o som do silêncio, a conviver em harmonia, a respeitar os outros e também as outras espécies. Com o mar aprendemos a viver intensamente.

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